“O Menino que Lia a Bíblia e Via o Povo Sofrer”**
“Eu lia os Salmos e via o povo chorar de fome.
Lia os Profetas e via o povo calado de medo.
Lia Jesus e via o povo sendo expulso do templo — de novo, todo dia.
Aí eu entendi: a Bíblia não era pra decorar. Era pra desobedecer o que estava errado.”
— João Joaquim (depoimento ao Museu da Pessoa, 2008)
João Joaquim nasceu num tempo em que o Nordeste ainda sangrava em silêncio — e a Igreja, por vezes, rezava de costas para o povo. Não se sabe ao certo o dia, porque naquela época, em muitas casas pobres, data de nascimento era luxo de cartório. Mas dizem que foi nos anos 1940, em algum lugar do Ceará — talvez numa casa de taipa, com telhado de palha, onde o vento entrava por todos os lados, mas onde a fé entrava mais forte ainda.
Sua mãe rezava de joelhos, mesmo cansada. Seu pai, quando tinha o que dar, dava — mesmo sem ter. E João, menino quieto, sentava no chão de barro batido, abria a Bíblia emprestada do padre da capela e lia — lia como quem procura remédio numa bula, como quem busca mapa num território sem saída.
Na casa de João, não havia jornal, nem rádio, nem escola por perto. Mas havia a Bíblia — e nela, ele encontrou histórias de escravos que se libertaram, de profetas que enfrentaram reis, de mulheres que desafiaram exércitos, de um carpinteiro que virou revolução.
“Eu lia sobre Moisés e pensava: ‘Será que alguém vai levantar pra tirar nosso povo daqui?’
Lia sobre Jesus expulsando os vendilhões do templo e pensava: ‘Por que ninguém expulsa os que vendem nossa dignidade?’
Lia sobre os bem-aventurados e pensava: ‘Mas os pobres aqui não são felizes — estão é morrendo.’”
A Bíblia, nas mãos de João, virou manual de resistência. Não aquela resistência armada, mas a mais perigosa: a que nasce da consciência. A que faz o oprimido olhar para o opressor e dizer, sem medo: “Isso aqui não é justo — e eu sei que pode ser diferente.”
Aos 12 anos, já ajudava o padre da paróquia — não por vocação clerical, mas por sede de sentido. Carregava banco, varria o chão, servia o vinho da missa. Mas o que mais o fascinava eram as conversas depois da celebração — quando os mais velhos falavam das colheitas perdidas, dos filhos que foram embora, dos patrões que não pagavam, dos políticos que prometiam e sumiam.
Foi ali, entre o incenso e o chão empoeirado, que João entendeu: a fé que não se encarna na luta do povo é só decoração espiritual.
Começou a questionar. A perguntar. A organizar. Reuniões aos domingos viraram círculos de estudo às segundas. O sermão virou debate. A oração virou plano de ação.
“Eu não queria ser padre. Eu queria ser igreja — aquela que caminha com o povo, que chora com o povo, que luta com o povo.”
Conta-se que, ainda jovem, João viu uma criança morrer de fome — e o padre da paróquia disse: “É a vontade de Deus.”
Aquilo o marcou como um raio.
“Naquele dia, eu entendi: ou a Igreja muda, ou eu mudo a Igreja.
Ou a fé serve à vida, ou não serve pra nada.”
Não se afastou da fé — pelo contrário. Aprofundou-se nela. Mas de um jeito perigoso: o jeito dos profetas incômodos, dos discípulos rebeldes, dos santos que preferem a rua ao altar.
Começou a ler Hélder Câmara, Leonardo Boff, Paulo Freire — teólogos que ousavam dizer que Deus estava na luta dos pobres. E não só na luta — na vitória dos pobres.
Anos depois, já adulto, João chegou ao Conjunto Palmeiras — não por acaso, mas por convicção. Sabia que ali, na periferia de Fortaleza, estava o coração pulsante da exclusão — e, por isso mesmo, o lugar onde a fé precisava se fazer carne, pão, trabalho, moeda.
“Eu não fui pra Palmeiras pregar. Fui pra aprender.
Aprendi que o povo já sabe tudo — só falta alguém acreditar nele.”
E foi acreditando — e só por isso — que, anos depois, nasceria o Banco Palmas. Mas isso é história para o próximo capítulo.
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“João, este capítulo é sobre suas raízes.
Está certo? Está errado? Falta alguém? Falta alguma oração? Algum nome? Algum cheiro?
Corrija. Risque. Escreva por cima.
Este livro é seu — e só estará completo quando passar pelas suas mãos.”
Foto antiga (preto e branco) de uma igrejinha de taipa no interior do Ceará — ou João ainda jovem, segurando uma Bíblia surrada.
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