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Por que o Brasil passou a imprimir dinheiro no Exterior



O comércio internacional de dinheiro é dominado por não mais do que 20 grandes empresas, que abastecem todas as nações do mundo e operam uma complicada logística de transporte por terra, mar e ar





A observação do dinheiro de um país é uma maneira interessante de conhecer sua história. Através dos tempos, cédulas e moedas narram ascensão e queda de poderosos, homenageiam heróis (e os relegam ao ostracismo), registram batalhas épicas, exibem símbolos nacionais e recebem marcas temporárias, como carimbos. A esses elementos visuais, somam-se marcas que chamam menos a atenção, como quem assina a cédula e o nome do fabricante daquele dinheiro. Esse último elemento, praticamente imperceptível, é o foco de uma licitação internacional do Banco Central (BC) brasileiro e de uma discussão que está apenas começando. No início de junho, cinco empresas de quatro continentes atenderam a um edital para a fabricação de 211 milhões de moedas, de R$ 0,05 a R$ 1. As Casas da Moeda do Chile, do Canadá, da Finlândia, da Polônia e da Índia enviaram suas credenciais e disputarão a encomenda, de olho em um dos maiores mercados consumidores de dinheiro do mundo. A demanda do BC por cédulas em 2018 é de 1,4 bilhão de unidades, o que equivale a cerca de 20% de toda a produção da Thomas De La Rue, a maior fabricante privada de dinheiro do mundo.

Esse é o segundo movimento do BC em direção ao mercado internacional de cédulas e moedas em dois anos. Em 2016, por meio de Medida Provisória, o governo Michel Temer autorizou o BC — a quem compete a emissão de papel-moeda e moeda metálica — a importar dinheiro, tirando da Casa da Moeda a garantia de exclusividade na produção de dinheiro no Brasil. A MP estabeleceu que a inviabilidade, a “fundada incerteza” ou o descumprimento de prazos quanto ao atendimento da demanda por dinheiro caracterizam situação de emergência. Com base nela, o BC foi dispensado de abrir licitação e enviou carta-convite a 14 grandes empresas de 12 países. A Crane AB, empresa americana com sede na Suécia, foi a escolhida para fornecer 100 milhões de cédulas de R$ 2 ao BC. A compra chamou a atenção basicamente dos colecionadores, que acompanham qualquer mudança no dinheiro brasileiro e chegaram a pagar, na ocasião, quase R$ 5 por cédula. Para o público, a diferença é praticamente imperceptível: em vez de “Casa da Moeda do Brasil”, lê-se nas notas “Crane AB”, em letras miudíssimas.

O comércio internacional de dinheiro é dominado por não mais do que 20 grandes empresas, que abastecem todas as nações do mundo e operam uma complicada logística de transporte por terra, mar e ar, garantida por altíssimas apólices de seguro e resseguro. A logística é desafiadora pelo valor e pelos volumes e pesos das cargas. Em 2016, as cédulas de R$ 2 constituíram uma carga de 5 mil caixas, cada uma com 20 mil cédulas e peso total aproximado de 81 toneladas, transportada de Estocolmo para Brasília de avião, devido à emergência da entrega — a carta-convite foi feita em setembro com o fim do prazo de entrega marcado para 31 de dezembro. Agora, as moedas que são objeto do edital de pré-qualificação em curso virão de navio em 41.408 caixas, que pesam em conjunto mais de 1.200 toneladas.

Naufrágios, sequestros de aviões, ataques terroristas e quadrilhas de piratas poderiam fazer parte da trama. No entanto, uma simples leitura cotidiana do noticiário internacional joga essa parte mais apimentada do enredo para o terreno da ficção. Já no quesito roubo de cargas nos portos e nas estradas no Brasil, os motivos de preocupação são reais. Mas o Banco Central afirma que não há motivo de alarme, uma vez que já existe uma larga experiência acumulada na distribuição de numerário em país de dimensões continentais como o Brasil. “Estamos bem tranquilos quanto à segurança”, disse o advogado Marcel Mascarenhas, procurador do BC. “Temos a estrutura necessária e o apoio das Polícias Militares dos estados.”

O advogado Rodrigo Ferreira, da Casa da Moeda, atenta para riscos que considera mais graves do que roubos e acidentes, como o inevitável compartilhamento de segredos industriais e itens de segurança com empresas estrangeiras. O BC assegura que há uma legislação severa de acesso à informação e uma garantia de sigilo com as quais todas as casas impressoras se comprometem. Ferreira, no entanto, vê com preocupação principalmente a compra externa de moedas, produto mais vulnerável à falsificação do que as cédulas, que têm itens de segurança como marca d’água, papel especial e outros. Mascarenhas, do BC, rebate com a convicção de que a concentração do mercado é fator de tranquilidade. “Existem poucas grandes produtoras no mundo. E o grande ativo delas é a segurança”, disse. O BC informou também que todos os procedimentos de verificação de conformidade obrigatórios para o dinheiro produzido no Brasil são seguidos quando o produto vem de fora. Durante o desenvolvimento e a produção das cédulas pela Crane AB, servidores do BC estiveram na fábrica para acompanhar e dar aceite nas etapas de produção e nos elementos de segurança. Posteriormente, foi produzido um lote-prova que foi enviado ao Brasil para testes.

Os preços cobrados pela casa da moeda são mais altos que os do mercado internacional. Em 2016, O BC economizou 20% ao comprar 100 milhões de cédulas de R$ 2 de uma empresa americana
As compras externas de dinheiro não são novidade no Brasil. Fundada em 1694, a Casa da Moeda sempre produziu as moedas metálicas, mas as cédulas foram adquiridas externamente em boa parte do tempo. Entre os anos 1950 e 1970, as cédulas que circulavam aqui eram fornecidas pela Thomas De La Rue. Só a partir de 1973, quando a Casa da Moeda foi transformada em empresa pública (antes era uma autarquia), o termo “do Brasil” foi acrescentado a seu nome, e, dentro da lógica das reservas de mercado do regime militar, ela ganhou exclusividade na fabricação de papel-moeda. Em 1994, quando a edição do Plano Real exigiu a substituição de todo o meio circulante brasileiro — em números de hoje, 6,2 bilhões de cédulas e 19,6 bilhões de moedas —, foi preciso importar apenas cerca de 10% da dinheirama. De lá para cá, não tinham acontecido novas compras externas.

As que acontecem agora têm diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. A resolução mais recente do CMN estabelece que, para o ano de 2018, o BC deverá, “em caráter excepcional”, destinar à Casa da Moeda um percentual mínimo de 80% dos recursos reservados para adquirir dinheiro. Esse percentual foi estabelecido com a condição de que a estatal mantivesse os preços de 2017 — o que não só foi atendido, como superado, com descontos de até 50%. Na prática, a importação das moedas, objeto da licitação em curso, é muito inferior aos 20% autorizados. O volume a ser comprado no exterior equivale, em valor, a apenas um sexto da encomenda total de R$ 130 milhões em moedas feita pelo BC para este ano. Todo o resto será comprado da Casa da Moeda, assim como a totalidade das cédulas — 1,4 bilhão. Mas a porta está aberta. E é aí, quando a autorização de importar se torna ampla, como um instrumento do qual o Banco Central pode lançar mão regularmente, que está o conflito principal entre as duas instituições.

No cômputo geral, as importações até agora são uma gota no oceano do meio circulante brasileiro, mas esse é um assunto que atiça convicções ideológicas poderosas. O embate mais evidente é aquele que opõe os que acreditam ser a produção de dinheiro uma prerrogativa do Estado e uma garantia de soberania nacional e os que consideram que as Casas da Moeda são gráficas sofisticadas, especializadas em papéis de segurança que podem ser cédulas, selos diversos ou passaportes (todos itens do catálogo da Casa da Moeda brasileira, aliás), capazes ou não de produzir moedas metálicas, mas que, em sua essência, são fábricas como outras quaisquer.

O primeiro grupo enxerga na mudança de política de aquisição do BC uma estratégia para desacreditar a Casa da Moeda e, assim, justificar sua privatização — anunciada em uma lista de 57 estatais em agosto do ano passado e que está parada até hoje. “É preciso desqualificar para justificar a privatização”, afirmou o deputado federal Celso Pansera, do PT fluminense, que preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Casa da Moeda, criada no final do ano passado. Por essa visão, a perspectiva de privatizar a estatal põe em risco a execução da política monetária e aumenta o risco de fraudes. O segundo grupo considera que é um passo acertado, uma vez que a Casa da Moeda não é responsável pela política monetária e tem demonstrado a ineficiência característica das estatais, com custos inflados por estruturas inchadas e práticas arcaicas de gestão. “A Casa da Moeda tem de melhorar sua eficiência e ocupar seu espaço no mercado internacional. Essa não é uma atividade estratégica, daqui a 20 anos o papel-moeda vai ser coisa do passado, coisa de colecionador”, disse Marcelo Mello, professor de economia e finanças do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec).

É exatamente nos quesitos eficiência e competitividade que a Casa da Moeda tem seu calcanhar de aquiles. Seus preços são expressivamente mais altos que os valores colhidos pelo BC no mercado internacional. No caso da importação de cédulas, a diferença foi de cerca de 20%. O BC gastou R$ 20,205 milhões, o que corresponde a um custo por milheiro importado de R$ 202,05, em comparação aos R$ 242,05 cobrados pela Casa da Moeda — uma diferença espantosa, levando em conta que a Crane arcou com os custos do transporte aéreo de Estocolmo para Brasília de uma carga de pouco mais de 80 toneladas e do seguro de transporte de valores. Na importação de moedas, o BC estima a diferença de preço em R$ 42 milhões, sendo que o volume físico de moedas importadas equivale a quase metade do que foi pedido à estatal.

Em 1994, quando a edição do Plano Real exigiu a substituição de todo o meio circulante brasileiro — em números de hoje, 6,2 bilhões de cédulas e 19,6 bilhões de moedas —, foi preciso importar apenas cerca de 10% da dinheirama
A Casa da Moeda apresenta uma série de justificativas para a disparidade. A principal é que ela tem a obrigação de manter uma capacidade instalada à disposição do Banco Central, haja ou não demanda, de forma a manter a autossuficiência nacional para a produção de dinheiro. Já os fornecedores estrangeiros fazem seus cálculos com base em suas capacidades ociosas, sem levar em consideração o custo fixo. Além disso, não prestam serviços ao BC, como custódia e perícias, que são incorporados aos preços da Casa da Moeda, nem arcam com o custo Brasil ou a alta carga tributária nacional. Também pesam no custo outros fatores, como um histórico de interferência política na indicação de dirigentes e de ineficiência da gestão, além dos sucessivos prejuízos do Cifrão, fundo de pensão dos empregados da empresa — fatos que a atual administração tenta enfrentar com um corte de gastos que incluiu redução de 20% em seu quadro funcional.

Marcel Mascarenhas, o procurador do Banco Central, considera esse um problema que diz respeito à gestão da Casa da Moeda, sobre o qual, portanto, o BC não tem por que se manifestar. Ele lembra que a autoridade monetária tem de garantir as demandas da sociedade em “tempestividade, segurança e preço”, o que não foi viabilizado pela Casa da Moeda em 2016, configurando a situação de emergência que levou à dispensa de licitação. Foi enviada uma carta-convite a 14 empresas, e seis delas compareceram à reunião de consulta de preços e viabilidade de entrega, realizada no Rio de Janeiro. Além da Crane, que acabou vencedora por ser a única a se comprometer com o prazo de entrega estabelecido, participaram as alemãs Bundesdruckerei e Giesecke & Devrient, a Casa de Moneda de Chile, a inglesa De La Rue e a francesa Oberthur Fiduciaire.

A importação realizada em 2016 foi destaque no Relatório da Auditoria Anual de Contas feito em 2017 pela Corregedoria-Geral da União. Esses relatórios são rotina na administração pública federal. Esquadrinham a prestação de contas de cada órgão, para posterior envio ao Tribunal de Contas da União. O relatório, de 56 páginas, foi aprovado por esse Tribunal, sem nenhuma constatação de irregularidade ou dano ao Erário, como destacou o procurador Marcel Mascarenhas. No entanto, fez ressalvas à gestão da compra de dinheiro e recomenda a adoção de medidas de aprimoramento em tal processo. Em relação à importação de cédulas, questionou a necessidade e a emergência, mostrando que o estoque de notas de R$ 2 disponível para o Banco Central era, na ocasião, superior à quantidade que a Casa da Moeda havia admitido ter dificuldade em fornecer. O relatório aponta ainda a demora do BC em fechar a encomenda de 2016 como determinante para a diferença do preço da Casa da Moeda em relação ao valor cobrado pela Crane. Naquele ano, o Programa Anual de Produção do BC foi entregue à Casa da Moeda em dezembro, mas o contrato só foi assinado em maio, devido a um atraso na definição do Orçamento da Autoridade Monetária.

Esse desencontro foi apenas um entre muitos. A capacidade de atendimento da Casa da Moeda também tem versões conflitantes. O Banco Central sustenta que a empresa vinha atrasando sistematicamente suas entregas, provocando transtornos no abastecimento do meio circulante, como falta de troco. “A situação estava insustentável”, disse Marcel Mascarenhas. A estatal admitiu que houve alguns atrasos, mas não a ponto de comprometer o abastecimento, e que sempre atendeu integralmente às encomendas do Banco Central. Especificamente em 2016, houve uma conjunção de problemas. Em julho, dois meses depois da assinatura do contrato, a Casa da Moeda comunicou em ofício ao Banco Central que o programa de produção de cédulas estava comprometido por problemas técnicos em um de seus principais equipamentos. O fornecedor — a alemã KBA — estabeleceu prazo de 12 semanas para solucionar o caso. O ofício informou que a produção de cédulas sofreria uma redução de 280 milhões de unidades nas denominações de R$ 2, R$ 5, R$ 10 e R$ 100. A Casa da Moeda comunicou em setembro ao BC que a situação estava resolvida, mas a decisão de editar a MP 745, que autorizaria a importação, já estava tomada, usando como justificativa o ofício de julho.

Em 2017 não se caracterizou emergência, e como o Banco Central não teria tempo de abrir processo de licitação, no caso obrigatório, ele adquiriu 100% de seu Programa Anual de Produção na Casa da Moeda. Para 2018, o Conselho Monetário Nacional, do qual fazem parte, além do BC, o Ministério da Fazenda e o Ministério do Planejamento, decidiu que era preciso aproveitar a vantagem de preço verificada em 2016. “Se, mesmo em situação de emergência, com prazo muito curto, a Crane conseguiu oferecer um preço vantajoso, não havia como deixar de lançar mão desse recurso. Faz parte de nossas obrigações”, disse Mascarenhas.

Muitos especialistas acreditam que o mercado internacional de dinheiro físico tende a minguar nos próximos anos. É fato que os meios eletrônicos de pagamento crescem aceleradamente. Mas, no futuro próximo, o papel-moeda continuará a reinar absoluto entre os meios de pagamento mais utilizados no mundo. Os dados são da Thomas De La Rue: hoje, 85% das transações de consumo são feitas em dinheiro. E mais: a demanda média por dinheiro em circulação aumentou em 9% no mundo inteiro, de acordo com dados do relatório de 2017 da Pacific Rim Banknote Conference.


Esse e outros dados formam a base de um trabalho coordenado por Rodrigo Ferreira no Núcleo de Estudos Estratégicos da Casa da Moeda. O Brasil é um mercado extremamente cobiçado no mundo — como ficou demonstrado na excelente resposta às duas investidas feitas até agora pelo BC. Isso representa uma vantagem de preço quando o país entra no mercado. O outro lado da moeda, segundo o estudo, é que essa mesma demanda pode se tornar um risco se a política do Banco Central caminhar para um grande aumento nas compras externas, deixando a produção local em segundo plano. O relatório anual 2017 da De La Rue indica que, dos cerca de 172 bilhões de cédulas emitidas em 2016, praticamente 90% foram fabricadas por empresas estatais. Apenas 11% das cédulas no período foram produzidas por casas impressoras comerciais. Segundo esse relatório, países com elevada demanda mantêm suas próprias casas impressoras. Foi investigada a política dos países donos dos 15 maiores PIBs em 2016 — lista liderada por EUA, China e Japão — e verificou-se que apenas o Canadá fabrica cédulas por meio de uma empresa privada. Alemanha e Reino Unido têm fornecimento misto de cédula. Todos os países listados têm produção estatal de moedas.



Fonte: Época

Autor do blog: Nilton Romani

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